quinta-feira, 21 de agosto de 2008

Pithecanthropus Erectus

a Estevão, meu calomelano



Era das 5 e meia da tarde que ele sentiria mais falta. A hora em que as imagens venciam as coisas. A hora do fogo. Sentiu estar com um pouco de frio, e quase riu ao lembrar Foucault...”o mais profundo é a pele”. Pensou que o humor negro sempre fora um tipo elevado de nos lembrar de quão patético é o horror tragédia.
Aos poucos ia se incomodando com a sua roupa que estava ensopada e ele não trocava. Olhou pelo retrovisor e viu sua versão de “Las Fuerzas Estrañas” estava aberta no meio da estrada. Reconheceu pela capa vermelha. Por momentos pensou se tratar do livro de Contos de Voltaire. Correu com os olhos e viu a sua escultura miniatura de Rodin em pedacinhos verdes nas extremidades ficavam esbranquiçadas. Se excitou em ver o quão lindos ficavam os pedaços verdes da estátua compostos com os pedaços de vidro do parabrisa nos cinzas...Certamente sentiria falta das 5 e meia da tarde.
Esqueceu que gravara um dia antes “My Favorite Things” com a viril execução do Coltrane naquela compilação. Era um disparate, principalmente por encaixá-la entre “Singhin and Cryin” e “It Never Entered My Mind”. O plástico do carburador entre seus dedos se moveu e interrompeu seus pensamentos. Não gritou. Não atrapalharia aquele espetáculo de montanhas douradas e delírios escarlate.
Por mais que tivesse parte do cambio de distribuição enfiado em seu ventre, sentia fome. Sentia também a falta de Carla. Lembrou que ela havia ensaiado uma dublê de Ella Fitzgerald cantando “So In Love”. Sentiu vontade de rasgar seu Suéter rubro, antes que ela pudesse inspirar. Entre uma nota e outra ele a amaria. Dormiria por dias no intervalo da voz de Carla, e transformaria aquele canto em lágrimas, em céus abertos, em tédio, em cabritos tocando violino. Fechava os olhos e podia sentir os salgados e ácidos do seu corpo...logo após, o gosto de sangue.
Conseguiu mexer levemente a cabeça para a direita e observou q a porta estava aberta. Viu o all star de lona branca...e um pouco do calcanhar apoiados no banco do carona. Era de Carla. Olhou pra frente. Era como ela sempre o repreendia a não ficar olhando pra ela enquanto dirigia. Não importa se foi assim.
Sempre sentiria saudades das 5 e meia da tarde, e se sentia seguro porquê Carla estava lá. Detestava não saber onde ela estava. Não queria ser seu único amor, só queria ser o primeiro. Assistiu com certo tédio os violetas tomando conta da paisagem. Ouviu som subir em fade rapidamente. Tentou virar pra ver o que era. No som “Don’t think Twice, Is All Right”...ao tentar se virar, paladar e olfato se fundiram. Nenhum sentido respondia mais por si. Todo tempo era urgente...e logo depois grandes demoras.
Sentiria muitas saudades, muitas, das 5 e meia da tarde. Não conseguia falar, mas cantava para Carla os últimos versos de “Two Of Us”

“…We're on our way home, We're on our way home, We're going home…”

Definitvamente sentiria saudades das 5 e meia da tarde, sentiria porque era a hora da sua morte.

9 comentários:

Unknown disse...

Intrigrante com uma trilha deliciosa.

bjo moço

diana sandes disse...

meu preferido entre os três de cá.
isso tudo que vc conta, teria durado qto tempo? 3 segundos? 5? ou uma vida inteira?
gosto da repetição da saudade das 5e meia da tarde.
bjo

blog disse...

Gostei, meu caro.
Tenho apenas uma reserva: é preciso realmente dizer que é a hora da morte?

Ver Dylan, Coltrane e Mingus dançando tango é de uma originalidade sem par. A cadência, a virgulação, as pausas, tudo ao ritmo de Gardel & cia.
Valeu, meu caro.

Grande abraço.

blog disse...

Blog sou eu: Grijó.

Unknown disse...

Vim aqui me deliciar com suas palavras.

Um bju,
Bruna Dornellas

Alessandra - Lain disse...

bem legal o ensaio! Se fosseu eu, deixaria umas reticências depois da saudade das 5 e meia e não revelaria que era o fim...
www.karapana.wordpress.com

Priscila Milanez disse...

"My favorite things" é a minha preferida do Coltrane...e a Ella, ah é ela!Trocadilho simplório pra grandeza da voz...Gostei das "5 e meia da tarde".Gostei mesmo do texto.
ah, qto ao teu comentário no meu blog, não entendi bem:amor, recife...enfim...
beijos

diana sandes disse...

e qdo atualiza isso aqui, heim?

Priscila Milanez disse...

cadê o texto anunciado pra semana passada? rs