segunda-feira, 9 de março de 2009

breve poema

O Caminho que caminho
É em tua direção que caminho
Amo tua sombra dourada
Teus sinos levantam o pó
dos porões da casa tomada

Beijo a cada passo desta estrada
tua paz encardida
Tua alma enaltecida
Em cem anos nada se saberá

Das Cidades e seus flancos secretos
Dos homens e os cânions
Da tua dimensão discreta

No teu descompasso quero transbordar dentro de ti
e fazer proliferar em teu ventre todos os medos
todos os sonhos, as folhas da relva
Toda a ciência
A trindade revelada

Imagino esquinas em contraplano
E me perco fora da estrada minha
Me perco por todos os rastros
Me calo com todas as bocas

quinta-feira, 21 de agosto de 2008

Pithecanthropus Erectus

a Estevão, meu calomelano



Era das 5 e meia da tarde que ele sentiria mais falta. A hora em que as imagens venciam as coisas. A hora do fogo. Sentiu estar com um pouco de frio, e quase riu ao lembrar Foucault...”o mais profundo é a pele”. Pensou que o humor negro sempre fora um tipo elevado de nos lembrar de quão patético é o horror tragédia.
Aos poucos ia se incomodando com a sua roupa que estava ensopada e ele não trocava. Olhou pelo retrovisor e viu sua versão de “Las Fuerzas Estrañas” estava aberta no meio da estrada. Reconheceu pela capa vermelha. Por momentos pensou se tratar do livro de Contos de Voltaire. Correu com os olhos e viu a sua escultura miniatura de Rodin em pedacinhos verdes nas extremidades ficavam esbranquiçadas. Se excitou em ver o quão lindos ficavam os pedaços verdes da estátua compostos com os pedaços de vidro do parabrisa nos cinzas...Certamente sentiria falta das 5 e meia da tarde.
Esqueceu que gravara um dia antes “My Favorite Things” com a viril execução do Coltrane naquela compilação. Era um disparate, principalmente por encaixá-la entre “Singhin and Cryin” e “It Never Entered My Mind”. O plástico do carburador entre seus dedos se moveu e interrompeu seus pensamentos. Não gritou. Não atrapalharia aquele espetáculo de montanhas douradas e delírios escarlate.
Por mais que tivesse parte do cambio de distribuição enfiado em seu ventre, sentia fome. Sentia também a falta de Carla. Lembrou que ela havia ensaiado uma dublê de Ella Fitzgerald cantando “So In Love”. Sentiu vontade de rasgar seu Suéter rubro, antes que ela pudesse inspirar. Entre uma nota e outra ele a amaria. Dormiria por dias no intervalo da voz de Carla, e transformaria aquele canto em lágrimas, em céus abertos, em tédio, em cabritos tocando violino. Fechava os olhos e podia sentir os salgados e ácidos do seu corpo...logo após, o gosto de sangue.
Conseguiu mexer levemente a cabeça para a direita e observou q a porta estava aberta. Viu o all star de lona branca...e um pouco do calcanhar apoiados no banco do carona. Era de Carla. Olhou pra frente. Era como ela sempre o repreendia a não ficar olhando pra ela enquanto dirigia. Não importa se foi assim.
Sempre sentiria saudades das 5 e meia da tarde, e se sentia seguro porquê Carla estava lá. Detestava não saber onde ela estava. Não queria ser seu único amor, só queria ser o primeiro. Assistiu com certo tédio os violetas tomando conta da paisagem. Ouviu som subir em fade rapidamente. Tentou virar pra ver o que era. No som “Don’t think Twice, Is All Right”...ao tentar se virar, paladar e olfato se fundiram. Nenhum sentido respondia mais por si. Todo tempo era urgente...e logo depois grandes demoras.
Sentiria muitas saudades, muitas, das 5 e meia da tarde. Não conseguia falar, mas cantava para Carla os últimos versos de “Two Of Us”

“…We're on our way home, We're on our way home, We're going home…”

Definitvamente sentiria saudades das 5 e meia da tarde, sentiria porque era a hora da sua morte.

sábado, 2 de agosto de 2008

Lectures

À Ivair Coelho


O amarelo e o vermelho da blusa do menino com os lábios neperinos transbordavam, transgrediam-se mutuamente. Pensou na imprecisão das cores e das horas e reparou novamente no relógio. Pensou em Arthur. Arthur, as horas e as cores. Menára e Arthur eram como dois copos de leite observando um bar de uma casa vazia. Ela temia que ele viesse com Picasso. Com Picasso de Clouzout e suas pinceladas precisas, suas cores lancinantes, seu olhar de frente para o quadro. Menos ainda que viesse com Pollock e suas janelas do estômago. Desejava as telas brancas, de fêmeas de patas fendidas, das chagas das nuvens coroadas com lágrimas do tempo.

Ao descer do ônibus parou na faixa do sinal e sentiu o odor de cigarro misturado com café que vinha do bafo de uma senhora gorda. Menára reparava que com certos tipos de composições essa combinação se assemelhava ao odor de fezes humanas frescas. Pensava que quando Arthur se irritava cheirava a coentro e alecrim nas tardes de maio. Ensinou a Arthur que o gozo de uma mulher poderia ser reconhecido pela mudança brusca no odor do seu hálito.

Atravessou a antiga ruela e foi dar na avenida principal, logo vê Arthur do outro lado da margem. Ele resolve correr na sua direção com o sinal ainda fechado para pedestres. Ela fecha o olho e ouve pequenas freiadas e duas buzinadas eqüidistantes. É despertada por uma angustiante pressão feita, por cima dos lábios, em seus dentes superiores. Ela perde sutilmente o equilíbrio, mas Arthur a segura pela cintura. Ela abre os olhos e desliza sobre a barba para os ombros. Percebe dedos úmidos tocando os seus e tem um primeiro mote pra fazer uma interferência nessa sinfonia mutilada.

Logo Arthur a arrasta pra Rua da Alfândega. Um único balão rosa decorava a entrada do local. Por dentro um néon vermelho que fazia a intensidade das coisas tomarem outro rumo. Os olhos de Arthur ganhavam uma urgência, como a da lua da areia infinita. O cheiro de nicotina no carpete ia dissolvendo o olfato de Menára. Uma mulher veio recebê-los. A voz chegou um segundo antes da imagem. A mulher, Sônia, tinha metade do corpo em carne viva. Econômica em fala e gestos os leva a entrada de uma sala de porta cinza. Menára repara um pequeno adesivo colado inequivocamente com os dizeres: “Olhai as aves do céu”.

Sônia pediu para o casal esperar, e entrou na sala. Menára mirava Arthur que com o lábio inferior penteava o bigode. Sônia retorna. Autoriza a entrada, porém segura no braço de Menára e fala:

- Não foi o fogo que fez isso comigo. Foram os dias e as noites. Não existem acidentes, só existem os crepúsculos e as madrugadas.
Menára diagnostica o hálito de Sônia, que era de pranto, mesmo que ela tenha falado com placidez.

Ao entrar na sala de construção centenária, testemunhou algo que nem em setecentas vidas poderia descrever. O lugar era ao mesmo tempo Nagasaki e o Campo Elíseos, era as alturas de Machu Pichu e os Átrios do templo de Salomão. Havia no lugar cegos com corpos encharcados de tintas que pintavam telas com seus troncos, sexólogos estudando violinos, pianos com oitocentas e catorze novas notas, cada qual com suas terças e oitavas. Menára sentiu o calor e o frio em estados puros. Amou todos os homens e mulheres daquela sala. Arthur ali parado, impávido, observava tudo com angustia, como se ele não mais habitasse o lugar, mas sim o lugar nele.

Uma mão puxa Menára pelo braço. É Sônia que deixando revelar seu lado com menos pele, diz que a próxima sala os espera. Os conduz agora mancando bruscamente de uma perna. Os sons entrecortados ao fechamento da porta, como um frigorífico, vão lentamente desaparecendo.

O cheiro é cambiante e o ambiente esfumaçado, luz subexposta, suspiros profundos. O novo espaço vai se revelando aos poucos à retina. Menára percebe que o ambiente anterior era um peep show desse novo. Aos poucos a neblina ia revelando os rostos em close. Logo aparece uma senhora com os olhos à Carmem Maura, levanta o seu vestido, revelando uma vagina como a terra de Marte, pulsando. Na mão esquerda um pedaço de vidro ela fazia desferir golpes lancinantes nas periferias de sua vagina. Ouve-se um grito e Menára volta-se para rever uma cena igual a que a tinha feito desistir de continuar a assistir à “Pequeno Grande Homem” do Arthur Penn. Um homem corpulento sendo suspendido somente pelos mamilos. Sentiu vertigem. Arthur sentou numa mesa junto a um homem que praticava um achatamento do Pênis. Mulheres apagando pontas de cigarro em mamilos, homens acendendo velas no ânus. Menára se lembrou das palavras de Sônia e começou a ouvir Strauss tocando. Começou a perceber os incríveis tons de magenta que misturados com o alto contraste de luz e sombra lembravam um Whistler.

Logo o magenta cambiava para azul, e incrivelmente passava para um amarelo forte. O fortíssimo de Danúbio Azul começava a impregná-la. Um dedo mutilado bateu na sua coxa e caiu no chão apontando pra outra fechadura. Arthur logo acenou com a cabeça prevendo a indagação.

Arthur desferiu um golpe certeiro arrombando a porta. Novo isolamento sonoro. Os tons pastéis revelam um quarto com uma cama de casal vazia e um espelho translúcido, que dá para o ambiente anterior. Arthur senta no chão, penteando agora com os dedos a barba. Na parede por cima da cama há um quadro, um pequeno quadro de um cavalo marrom. Menára olha o quadro, em contra plano.

- Nada se sabe- disse Arthur- Todas as coisas ainda estão a ser ditas...

Menára sentiu um formigamento familiar no braço esquerdo.

Partiram para o Metrô, na boca, o gosto do céu escarlate. Menára vê Arthur, que a trás para si num intenso abraço, beija-lhe a testa e se desprende dela. Se junta à multidão que sai dos vagões prateados, ela ali embriagada por uma vertigem sem linguagem, vê a imagem de Arthur em composição com a multidão e sente a força do espelho da morte. Os vermelhos e amarelos que a multidão imprecisa destilavam faziam nascer um novo Arthur, sempre, uma nova Menára, e o braço de Menára não parava de formigar.

De André Félix

quinta-feira, 31 de julho de 2008

A Pequena Imortalidade

Como todos os homens da região da Borgonha, Mario mirava a vida pela janela do quarto, como Jacó da Bíblia, que espiava sempre o seu irmão Esaú, ansiando pelo momento de suplantar sua herança. Para Mario, a fresta era um destino. Uma inclinação da alma, como os ventos Elíseos que sempre correm em direção do continente.
Descia ao Palácio dos Duques, sempre às quatro horas, e sorvia de um só gole o seu Carmenére, técnica que aprendeu com o Coronel Jean Luc Liottard, na batalha da antiga Antuérpia. Por vocação, mais do que por vontade, se tornou jornalista, mas era ali naquela indefectível construção medieval, tornava o insone entardecer o segundo plano de seu canto. Mario observava tarde após tarde o rigoroso passeio de gestos fugazes das mulheres da cidade, que displicentemente proporcionavam um pequeno jogo de panoramas, e sussurros involuntários, onde todo homem se torna nova criatura, e todas as preces são momentaneamente atendidas.
No final da tarde de 5 de Julho, ao sentir um leve incomodo na região acima do estômago, abaixa a cabeça e ao levantá-la encontra Apolônia. Mario julgou que era a filha da irrepreensível Senhora de Coutard pelo simples fato de estar lendo “Vida de Marco Bruto” de Francisco Quevedo. Mario a descrevia no seu livro de notas comprado à rue de Leautreamont, Contava a si mesmo sobre os escorpiões e rosas gris que cercavam sua pele. Ao acabar o texto se sentia a contento. E se voltava para o velho Bornescau
- Não há nada mais que um homem possa desejar...
Bebia o último gole do vinho já quente e descia a rua de paralelepípedos, e voltava para o seu apartamento, a luz já tinha a cor como das recordações perspícuas.

***
Duas ou três vezes pensou em se aproximar, mas julgava que a paixão vinha da palavra. O papel e a caneta tinteiro as tornavam personagens de uma era insuspeita. Onde todos os destinos coexistem e onde o fundo da alma não terá nenhum desespero em seu reflexo. Mario amava as imagens de suas musas, mas amava mais as neblinas que o tempo imprimia aos movimentos. Era na sombra que ele via suas musas, no lugar onde e delírio e insônia são contraparentes.
No mês quarto do segundo ano após a queda do Grão-Duque Jean Pierre Hubaux, Mario errava nas imediações do Palácio quando a hora já fazia com que as árvores falassem aos ventos. Mario se preparava para sorver o primeiro gole do seu vinho de safra questionável, quando vê cruzar a Praça Camile. Cruzava a praça não como uma pequena serva dos deuses do Olimpo, mas como uma deusa da caça. Seu cachecol era vermelho, e insistia em brincar com seu rosto lívido. Mario observava e sem deixar de fitar a galesa caucasiana, tateava sua bolsa à procura da caneta e do livro de notas. O vento sul, prenunciava a hora do demasiado tarde. Antes que pudesse começar a escrever, Camile levanta de sua mesa, e vai até a mesa onde se encontra um casal, encara o rosto do homem, que já ostentava uma pequena entrada na cabeça para a calvície, e enfia-lhe uma faca no lado esquerdo do tronco, um pouco abaixo dos pulmões. Retira a faca e se aproxima de Mario que imóvel assiste Camile jogar em sua mesa a faca e andar como uma transeunte apressada.
E daquele dia em diante nunca mais Mario escreveu. Seu nome inequivocamente vinha acompanhado da palavra exílio. Alguns dos antigos ismaelitas, diziam tê-lo visto no caminho que vai dar em Damasco, porém não estava ao encontro de nenhuma luz, nenhuma cegueira. Sempre está ao lado de uma mulher que nenhuma dos grandes maledicentes da região da Borgonha conhece. Não é nem Camile, nem tão pouco a possível enteada da Madame. Somente Mario sabia que era a própria morte. Andavam num exílio compartilhado. Compartilhada também era o desejo de ambos de olhar a vida.