sábado, 2 de agosto de 2008

Lectures

À Ivair Coelho


O amarelo e o vermelho da blusa do menino com os lábios neperinos transbordavam, transgrediam-se mutuamente. Pensou na imprecisão das cores e das horas e reparou novamente no relógio. Pensou em Arthur. Arthur, as horas e as cores. Menára e Arthur eram como dois copos de leite observando um bar de uma casa vazia. Ela temia que ele viesse com Picasso. Com Picasso de Clouzout e suas pinceladas precisas, suas cores lancinantes, seu olhar de frente para o quadro. Menos ainda que viesse com Pollock e suas janelas do estômago. Desejava as telas brancas, de fêmeas de patas fendidas, das chagas das nuvens coroadas com lágrimas do tempo.

Ao descer do ônibus parou na faixa do sinal e sentiu o odor de cigarro misturado com café que vinha do bafo de uma senhora gorda. Menára reparava que com certos tipos de composições essa combinação se assemelhava ao odor de fezes humanas frescas. Pensava que quando Arthur se irritava cheirava a coentro e alecrim nas tardes de maio. Ensinou a Arthur que o gozo de uma mulher poderia ser reconhecido pela mudança brusca no odor do seu hálito.

Atravessou a antiga ruela e foi dar na avenida principal, logo vê Arthur do outro lado da margem. Ele resolve correr na sua direção com o sinal ainda fechado para pedestres. Ela fecha o olho e ouve pequenas freiadas e duas buzinadas eqüidistantes. É despertada por uma angustiante pressão feita, por cima dos lábios, em seus dentes superiores. Ela perde sutilmente o equilíbrio, mas Arthur a segura pela cintura. Ela abre os olhos e desliza sobre a barba para os ombros. Percebe dedos úmidos tocando os seus e tem um primeiro mote pra fazer uma interferência nessa sinfonia mutilada.

Logo Arthur a arrasta pra Rua da Alfândega. Um único balão rosa decorava a entrada do local. Por dentro um néon vermelho que fazia a intensidade das coisas tomarem outro rumo. Os olhos de Arthur ganhavam uma urgência, como a da lua da areia infinita. O cheiro de nicotina no carpete ia dissolvendo o olfato de Menára. Uma mulher veio recebê-los. A voz chegou um segundo antes da imagem. A mulher, Sônia, tinha metade do corpo em carne viva. Econômica em fala e gestos os leva a entrada de uma sala de porta cinza. Menára repara um pequeno adesivo colado inequivocamente com os dizeres: “Olhai as aves do céu”.

Sônia pediu para o casal esperar, e entrou na sala. Menára mirava Arthur que com o lábio inferior penteava o bigode. Sônia retorna. Autoriza a entrada, porém segura no braço de Menára e fala:

- Não foi o fogo que fez isso comigo. Foram os dias e as noites. Não existem acidentes, só existem os crepúsculos e as madrugadas.
Menára diagnostica o hálito de Sônia, que era de pranto, mesmo que ela tenha falado com placidez.

Ao entrar na sala de construção centenária, testemunhou algo que nem em setecentas vidas poderia descrever. O lugar era ao mesmo tempo Nagasaki e o Campo Elíseos, era as alturas de Machu Pichu e os Átrios do templo de Salomão. Havia no lugar cegos com corpos encharcados de tintas que pintavam telas com seus troncos, sexólogos estudando violinos, pianos com oitocentas e catorze novas notas, cada qual com suas terças e oitavas. Menára sentiu o calor e o frio em estados puros. Amou todos os homens e mulheres daquela sala. Arthur ali parado, impávido, observava tudo com angustia, como se ele não mais habitasse o lugar, mas sim o lugar nele.

Uma mão puxa Menára pelo braço. É Sônia que deixando revelar seu lado com menos pele, diz que a próxima sala os espera. Os conduz agora mancando bruscamente de uma perna. Os sons entrecortados ao fechamento da porta, como um frigorífico, vão lentamente desaparecendo.

O cheiro é cambiante e o ambiente esfumaçado, luz subexposta, suspiros profundos. O novo espaço vai se revelando aos poucos à retina. Menára percebe que o ambiente anterior era um peep show desse novo. Aos poucos a neblina ia revelando os rostos em close. Logo aparece uma senhora com os olhos à Carmem Maura, levanta o seu vestido, revelando uma vagina como a terra de Marte, pulsando. Na mão esquerda um pedaço de vidro ela fazia desferir golpes lancinantes nas periferias de sua vagina. Ouve-se um grito e Menára volta-se para rever uma cena igual a que a tinha feito desistir de continuar a assistir à “Pequeno Grande Homem” do Arthur Penn. Um homem corpulento sendo suspendido somente pelos mamilos. Sentiu vertigem. Arthur sentou numa mesa junto a um homem que praticava um achatamento do Pênis. Mulheres apagando pontas de cigarro em mamilos, homens acendendo velas no ânus. Menára se lembrou das palavras de Sônia e começou a ouvir Strauss tocando. Começou a perceber os incríveis tons de magenta que misturados com o alto contraste de luz e sombra lembravam um Whistler.

Logo o magenta cambiava para azul, e incrivelmente passava para um amarelo forte. O fortíssimo de Danúbio Azul começava a impregná-la. Um dedo mutilado bateu na sua coxa e caiu no chão apontando pra outra fechadura. Arthur logo acenou com a cabeça prevendo a indagação.

Arthur desferiu um golpe certeiro arrombando a porta. Novo isolamento sonoro. Os tons pastéis revelam um quarto com uma cama de casal vazia e um espelho translúcido, que dá para o ambiente anterior. Arthur senta no chão, penteando agora com os dedos a barba. Na parede por cima da cama há um quadro, um pequeno quadro de um cavalo marrom. Menára olha o quadro, em contra plano.

- Nada se sabe- disse Arthur- Todas as coisas ainda estão a ser ditas...

Menára sentiu um formigamento familiar no braço esquerdo.

Partiram para o Metrô, na boca, o gosto do céu escarlate. Menára vê Arthur, que a trás para si num intenso abraço, beija-lhe a testa e se desprende dela. Se junta à multidão que sai dos vagões prateados, ela ali embriagada por uma vertigem sem linguagem, vê a imagem de Arthur em composição com a multidão e sente a força do espelho da morte. Os vermelhos e amarelos que a multidão imprecisa destilavam faziam nascer um novo Arthur, sempre, uma nova Menára, e o braço de Menára não parava de formigar.

De André Félix

Um comentário:

Anônimo disse...

Sambando nas cordas bamba de uma viola vadia... não, não espere encontrar numa canção nada alem de um sonho, nada alem de uma ilusão... talvez quem sabe a verdade, a infinita vontade de arrancar de dentro da noite a barra-clara do dia..

Hoje é o meio do fim que nunca chegara..